15 de outubro de 2013

TRIEFE

Desde os tempos do Estado Novo que existe em Portugal um quadro terapêutico de excelência, passível de ser aplicado como anestésico cerebral à população em geral, sendo imune ao mesmo apenas um escasso número de lusitanos.
Esse quadro é composto por três elementos, a saber: “Fátima, Fado e Futebol”, estando disponível no mercado com a designação TRIEFE, nada tendo a ver com aquele medicamento que as senhoras usam em determinadas alturas do mês para aliviar as dores menstruais. Pode, em caso de necessidade, ser complementado, de acordo com o simposium terapêutico, por alguns analgésicos, fornecidos pelos mesmos distribuidores do anestésico.
Antes de avançar na minha narrativa (termo agora muito na moda), quero começar por esclarecer que também vou a Fátima, gosto de ouvir fado (sabe tão bem ouvi-lo quando se está a milhares de quilómetros de distância) e até tolero o futebol, embora as minhas preferências vão para o ciclismo.
Mas desengane-se quem pensa que a dita terapia foi um exclusivo do Estado Novo salazarento e da primavera marcelista (uma corruptela do primeiro), porque a mesma tem vindo a ser utilizada diariamente, de forma brilhante, eu diria mesmo magistral.
Começando pelo futebol, durante a semana passada Portugal viveu imerso na questão de vida ou de morte que é para este país e para a sua agonizante massa humana que por cá se vai aguentando, o apuramento da seleção para o Mundial de 2014. Tanto quanto sei, não obstante o conjunto de vedetas milionárias cheias de tiques que não lembram ao diabo, a seleção não conseguiu corresponder às expetativas em termos de futebol jogado, mas para já os aficionados têm tema para conversa que se prolongará até terça-feira que vem.
Depois, a 13 de outubro, tivemos Fátima, local de deslocação obrigatória para milhares e milhares de pessoas aflitas que ali vão procurar inspiração divina para enfrentar os problemas que as afetam no seu dia-a-dia, já que quem as devia ajudar na Terra só lhes cria obstáculos da mais variada índole. Acresce que a imagem de Nossa Senhora de Fátima tinha ido ao Vaticano, embora tenha sido substituída, dos poros de muitos peregrinos, apesar do terreno sagrado que pisavam, emergiu uma amálgama de desânimo e irritabilidade, porque se sentiram frustrados nas suas expetativas, como se não lhes bastassem as falhas do profano, também o sagrado lhes trocou as voltas.
Ao falar de peregrinos, não podia deixar de fazer referência a um grupo deles (com quem tive o privilégio de me cruzar e cuja imagem não esquecerei) de origem lituana, os quais percorreram 4.400 quilómetros a pé até Fátima carregando uma cruz de 65 quilos, a sua digressão terminará em Guadalupe no México, a 31 de outubro. Fizeram questão de frisar que os dois países onde foram melhor recebidos, foi em Portugal e na Polónia, e o pior (vá-se lá saber porquê) foi na Alemanha. Um amigo meu, arrumador de carros em “full time” e num pós doutoramento em antropologia social nas horas vagas, sussurrou-me ao ouvido (não fosse o diabo tecê-las) que os germânicos (rima com mecânicos), consideram essas exteriorizações como puras perdas de tempo que podiam ser aproveitadas para produzir algo de útil.
Quanto ao fado, não me refiro a ele em sentido restrito, mas à animação que grassa durante todo o fim-de-semana televisivo com a deslocação das televisões a feiras e romarias, onde montam arraiais com um considerável acervo de cantores e animadores que põem Portugal a cantarolar e a bambolear. Ao mesmo tempo, vão alimentando a esperança num prémio chorudo aos telespectadores mediante a marcação de um número mágico que lhes vai sugando o saldo do telemóvel. Como se isto não bastasse, à noite ainda somos brindados com dois programas que se digladiam freneticamente entre si, um que escava o país à procura de novos cantores enquanto no outro se procura descobrir os segredos dos concorrentes.
E, foi neste contexto de quase desaire da seleção, das celebrações do 13 de outubro com a ausência da imagem de N.ª Sr.ª de Fátima e de intoxicação pimba que o Governo decidiu reunir em Conselho de Ministros e traçar as medidas orçamentais que irão sugar as vítimas do costume. Portanto, a populaça estava devidamente entorpecida quando o Dr. Paulo Portas veio sossegar os reformados deste país, almejava pelas delícias e pelo conforto do leito quando o par de ilustres comentadores dominicais entrou em ação e já estava nos braços de Morfeu quando o “meeting” ministerial findou.
Assim, somos levados a concluir que a receita do TRIEFE funcionou em pleno, e não fosse o Diabo tecê-las, para o caso da terapia não ser suficiente, ainda se foram buscar mais dois "fait-divers", de cariz analgésico, bastante cotados no imaginário português. Num deles, o caso do “estripador de Lisboa”, Barra da Costa, com aquele ar sério e circunspeto veio a terreiro afirmar que identificou o estripador. No outro, o caso Madie, a Scotland Yard colocou em circulação dois retratos robô que corresponderão a eventuais suspeitos do desaparecimento da menor inglesa.
Logo, preocupações não nos faltam, por isso não vale a pena perder tempo com essa maçada inútil do Orçamento 2014 e dos cortes associados. E quem ousar tocar nesse assunto, onde quer que seja (metro, comboio, café, autocarro….), para dar ares de elevada literacia, sujeita-se a penalidades severas, pois um “bonus pater famílias” não se pode preocupar com tais trivialidades.

© Vladimir da Lapa